Ana deixara-se adormecer mais uma vez sobre os cadernos entreabertos enfeitados com linhas controversas à realidade, por entre temas insólitos sonhadores por uma mente desvanecida pela saudade.
As janelas batiam-se trucidando a soleira com cicatrizes de uns olhos que espreitavam do lado de fora, curiosos por entrar e dar uma pequena vista de olhos pelos subscritos que dançam ao sabor do vento pelo chão. Sobre a mesa dormitava um corpo de uma mulher, os seus lábios coravam à luz do candeeiro e a sua pele brilhava num resplendor imenso. Ele reconheceria aqueles olhos em qualquer lado e a beleza do contorno do seu rosto seria incomparável a tantos outros.
O vulto de olhos arregalados esperava pelo momento certo, espreitou pela última vez para o interior do salão e agilmente debruçou-se sobre as suas mãos grandes no parapeito da janela.
O salão continuava no silêncio e os seus grandes olhos demoraram-se na mulher que sonhava adormecida em cima da mesa — Serias perfeita — pensou a sombra, mas os seus lábios somente se desenhavam num sorriso ameaçador.
Ana remexeu-se e voltou a cara para o lado oposto ao caderno e caiu no sono — Amadeu, és tu que estás aí? — os lábios moveram-se para cima e para baixo num movimento unilateral, mas os olhos não se abriram. O gato ronronou por entre a porta aberta e os olhos do desconhecido olhavam-lhe em desespero implorando para não fazer barulho. A adrenalina fervilhava-lhe nas veias-a qualquer a momento ela acordaria e vê-lo-ia — pensou. Entrar na sua antiga casa percorria-o de histórias e memórias ali vividas, dilaceravam-lhe o corpo lentamente, teria de ser rápido! Recolheria todas as provas que conseguiria e sairia sem deixar rasto.
Antes de sair olhou uma vez mais para a mulher, aquela tinha sido em tempos o amor da sua vida, mas por agora teria de deixar os sentimentos de lado o trabalho entre mãos seria a sua grande prioridade. Incriminá-la seria fácil, bastava contar as suas histórias escritas pelas suas mãos doces e suaves.
O coração dele vacilou por um instante e as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto derramando-se pela carpete de veludo, confuso pelo momento saiu pela janela que se agredia mutuamente ao sabor do vento.
— Adeus meu amor — a sombra já do lado de fora soluçava pelo perdão de um amor impossível, seria aquele o seu último adeus?
Ana acordou de sobressalto com o ronronar do seu gato Amadeu a roçar-se nas suas pernas, pegou-o ao colo e dirigiu-se à janela. A sombra penetrou nos arbustos para não ser vista e ficou imóvel a admirar os movimentos da silhueta da mulher a fechar a janela.
— Vamos Amadeu, está na hora de dormir! — bocejou num estiar de membros. O gato acocorou-se no seu colo enredando-se numa bola de peluche e ela dançava em pequenos movimentos sonolentos em modo automático pelo corredor até ao quarto. A sombra acompanhava do lado de fora todos os movimentos, a janela do primeiro andar iluminou-se e ela despiu-se à luz do candeeiro, o seu corpo delineava-se em linhas curvas e os olhos da sombra percorriam na memória os toques outrora sentidos na doce pele daquela mulher.
Ela olhou mais uma vez pela janela e mesmo ensonada viu um vulto por entre a noite mexer-se e remexer-se por entre os arbustos em movimentos desconcertante, sentiu o seu olhar pousado em si — seria ele? — uma esperança aglomerou-se na sua pele e esta arrepiou-se pela agitação da emoção — és tu, Daniel? — gritou para o escuro. A sombra chorou mais uma vez e com um movimento rápido desapareceu por entre a escuridão da noite.
Ela sabia que ele a visitara, ainda o amava. O amor que os unia não era possível, ela dormia com outro homem na sua cama todas as noites e o seu corpo suspirava por ele e ele por ela. Todas as noites ela olhava para a cama e imaginava-se ao lado dele, imaginava que o homem ao seu lado seria ele e adormecia com medo de na manhã seguinte ele não estar ao lado dela, tinha sido um erro amar outro homem se não Daniel, o tempo roubara-lhe o sentido para regressar ao passado e trazendo-o para o seu presente.
Daniel movia-se todas as noites por entre as sombras até à sua casa para a ver escrever do lado de fora da janela até ela adormecer sobre os sobrescritos e de seguida roubava-lhe as histórias sobre o amor de ambos que ela escrevia, eram as suas memórias soltas para os dois. Ela sabia quem lhe roubava os manuscritos por isso escrevia mais e mais para que ele soubesse o quanto sentia a sua falta. O amor do lado de fora da janela matava os seus corpos por inteiro — um dia serás minha, para sempre — prometera ele, cumpriria para o bem dos dois.
— Amo-te — disse ele para o vento à espera que ela ouvisse.
Cláudia Lopes
Fotografia retirada da Internet :
https://www.pinterest.pt/pin/503488433321201800/
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