Entrada no hospital
Vista à distância a vida humana é um composto de arte e filosofia, uma coisa bonita e suculenta, com um amargo na sua larga história. Sentimentos fixos e egoístas, uma ganância insaciada, esfomeada por uma suculenta parte de infortúnio na nossa espécie.
Somos os seres mais temíveis do mundo, capazes de destruir a nossa própria essência.
A crueldade humana ultrapassa fronteiras com um manto de invisibilidade, contagiando tudo e todos à sua volta, será o nosso fim? Nascemos com um destino traçado, mas nunca julgamos que a meta esteja já ao virar da esquina a qualquer instante, seremos assim tão fáceis de abater? Seremos somente carne e osso a desfazer?
Sejamos sensatos, colhemos o que semeamos, essa é a realidade. Um fruto podre que cai sobre o chão macio e agridoce, não sabemos amar-nos, não nos desejamos mais do que a nós mesmos, abandonamos a nossa própria espécie, o dinheiro é o rei no meio de um amor, já param para pensar na vida?
Eu hoje vejo, a morte a aproximar-se diante dos meus olhos, as lágrimas nos olhos de outra pessoa escorrem pelas faces, mas eu sinto-as como minhas. O coração pára de latir com um urro distante, vejo a alma vaguear sobre mim, sobre nós, afasto-me num leve suspiro e sinto a vida esgueirar-se pelos dedos.
Somos um instante constante, contentámo-nos a ser mortais diante de um inimigo atroz, invisível, cruel, partimos sem julgamento, sem uma indemnização, sem fazermos as malas, sem nos despedirmos de quem amamos.
Amor, algo que desprezamos constantemente, falta-nos o valor de nos completar-nos de nos amarmos, de sermos um só corpo.
Mas hoje é diferente, a vida não sorri. As almas perdem-se num minuto, os gritos ensurdecem o ar, os suspiros são mais frenéticos, mais do que o habitual, quem ganha agora?
As fronteiras fecham-se, os turistas entram em decréscimo, as vidas entram em quarentena enquanto outras partem para um lugar distante, uns lutam como guerreiros na frente de batalhas com umas armas diferentes. A guerra hoje é diferente, usam-se todas as técnicas de sobrevivência que aprendemos ao longo dos anos de estudos. Tudo vale. Tudo se perde num instante. Todas as frentes de batalha se alinham para a vitória que está longe de ser o triunfo de um povo que até hoje desprezou o mundo.
Esperemos ser autos-suficientes. Seremos agora mais unidos, pelo menos eu espero.
Aprenderemos algo com tudo isto? Só o tempo irá decidir qual o resultado final.
O número cresce de dia para dia, os dias tornam-se noites e as noites tornam-se dias no meio de quatro paredes, hoje é a minha vez de entrar no campo de batalha. Mas que batalha! Não julguei ver tanta gente, cada uma com uma arma distinta, uns usam muitos plásticos, vejo muitas máscaras, muitos tubos, um som vindo não sei de onde que me tem incomodado desde que entrei nesta sala. Só vejo correm à minha volta.
“Pressão arterial, estabilizada”, “nível de oxigénio, baixo”, “dificuldade em respirar de 10 a 100, o paciente tem 5%”, “sintomas, dores no corpo, febre alta, dor no peito, dificuldade em respirar. O paciente sofre de asma”.
A minha cabeça anda num rodopio gigante, sinto-me como se estivesse a dar uma volta na montanha-russa mais alta do mundo.
Primeira semana — Internamento na UCI
Sinto-me como se o sonho fosse constante, sinto-me a pairar sobre o meu corpo. Vejo-me deitado de barriga para baixo no meio de tubos e mais tubos, não consigo acordar, não consigo mover o meu próprio corpo, estarei morto? Ouço ao longe uns passos apressados enquanto uma máquina apita ao meu lado como uma louca, espreito e vejo “nível de batimentos cardíacos baixos”
— Vamos perde-lo — afirma uma enfermeira
— Traga o desfibrador, caso venha a fazer falta para reanimação!
Sinto um ardor tão imenso no meu peito, quero viver, quero respirar, quero cheirar as flores lá fora que desabrocharam agora na primavera.
Bip,bip!
— Doutora, o doente parece estar a estabilizar.
— Sim, traga mais medicação e administre por intravenoso.
Sito-me perdido no meu devaneio, onde estou? Porque estou aqui? Tive um acidente?
Depois da medicação tomada, a visão tolda-se por uns breves instantes, as enfermeiras abandonam o quarto.
A última recordação que tenho é de ter saído para tomar o pequeno almoço antes de ir trabalhar, é a minha rotina diária. Recordo-me de sentir uma dor imensa no peito e uma falta de ar que me trucidava os pulmões, lembro-me de sentir umas mãos quentes envolverem-me antes de desmaiar de dor. O meu último pedido ouço-o ao longe, “diz à minha família que a amo muito”. A mente apagou e o corpo desvaneceu.
As sirenes ainda ecoam na minha cabeça como um zumbido, estava inconsciente, ouvi os paramédicos dizerem que tinha sido mais uma vítima do vírus SARS-cov2, o teste mais tarde veio a confirmar o óbvio.
Tenho medo, confesso. Medo de não vos voltar a ver mais, medo de não ver o mundo e a sua mudança, medo de não sentir o sabor da vida a escorrer pelas minhas veias, de não aquecer debaixo do cobertor junto à lareira com o gato em cima do colo. Aquela bolinha de pêlo que me faz tanto rir com as suas peripécias até doer-me a barriga. Vou ter imensas saudades de sentir o abraço de todos vós, amo-vos tanto.
Antes, nunca vi como era bom viver, agora sei o quão difícil é ser um pecador. Nunca pensei quando desprezei um amigo ou um familiar, quando disse aquelas palavras feias que magoam tanto, quando não acompanhei o meu filho pela primeira vez na primeira festinha da escola, ficou tão triste. Desprezei tudo pelo dinheiro que sempre ambicionei ganhar para evoluir na minha carreira como empresário, o sucesso entre todos os que me rodeavam, queria mais e mais para ser maior que todos, mais inteligente, mais rico, mais pobre em amor e felicidade. Tudo ao meu redor seguia o seu curso enquanto eu somente via dinheiro e trabalho. “A força dos maus é eles considerarem-se bons e vítimas dos caprichos alheios”, neste caso os meus caprichos fizeram-me retroceder no tempo e desprezar a beleza da vida.
Se gostaria de ter mais uma oportunidade, claro que sim, nestas circunstâncias todos quereriam voltar um passo atrás e retomar no sítio mais feliz das nossas vidas.
Aqui não há visitas, não há palavras, não há perdão, estamos sozinhos a divagar nos nossos erros.
Confesso que não pensei em nada disto quando abusei da sorte nos meus últimos dias. Não liguei à tosse constante, nunca usei a máscara como todos indicavam, nunca coloquei nem uma gota de álcool nas minhas mãos, distância social nem consegui manter, até fui numa última viagem de negócios a Itália para um acerto no encerramento do meu último negócio. Tudo correu como previsto, a minha família acompanhou-me, nunca foi de acordo em ir, mas fiz toda a questão em levá-los. As fronteiras estavam prestes a encerrar e quando iríamos ter outra oportunidade de viajar em família?
A culpa foi toda minha, como estará a minha família agora? Também estarão internados aqui? O meu egoísmo superou todos os limites, deveria ter feito tudo diferente, mais tarde teríamos mais tempo para sermos uma família feliz. Talvez nunca mais viajássemos juntos depois deste incidente.
Tenho a mais profunda noção que poderei nunca mais sair deste estado critico em que coloquei o meu corpo à disposição da ciência. Todas as horas, todos os minutos, todos os segundos são decisivos para o meu estado.
As enfermeiras voltam a entrar para avaliar o meu caso.
— O estado do paciente é grave, uma pneumonia grave, esperemos que os seus órgãos não sejam afetados.
— Sabes que tudo pode acontecer, tudo depende da reação à medicação durante os próximos oito dias de tratamento. É um doente asmático, será mais complicado de tratar.
— Sabes alguma coisa da sua família?
A minha família…
— Não, sei que estiveram todos em contacto e ficaram em quarentena. Até à data presumo que ouvi dizer que estavam assintomáticos.
A minha família está de quarentena por minha irresponsabilidade. As lágrimas preenchem-me os olhos que não sinto, que estão no meu corpo fechados a sete chaves.
Quanto mais me aproximo da verdade sobre mim mesmo, mais surpreso fico com a maldade que ainda há dentro de mim, mesmo sofrendo com o medo bem presente diante dos meus olhos, encontro em cada fenda do meu ser todos os erros e toda a dor que causei ao meu redor. A maldade humana é um abismo com forte poder de magnetismo, que arrasta a pessoa para o inferno dentro de si mesma.
Serei capaz de emergir do meu ser, ser melhor para todos e para mim? Agradecer à vida por mais uma oportunidade, se a tiver um dia, fazer a minha parte durante o meu tempo de existência e saber quem eu sou de verdade. Sábio, é quem vê a vida ao pormenor com todos os defeitos, aprender com os erros e ver com olhos divinos o que há em cada um de nós e não daqueles que tentam nos manipular e controlar a nossa maneira de pensar. Seremos livres!
Antes do vírus
O dia começava bem cedo para mim, levanta-me pelas sete horas da manhã para tomar o pequeno-almoço e preparar a papelada para a próxima reunião. O meu escritório não ficava longe de casa, por isso bastava apanhar o elétrico. Era um passeio curto para desanuviar o stress do trabalho que me aguardava sobre a mesa. Por regra parava sempre no café que se encontrava na lateral do escritório, lia o jornal do dia, tomava o meu americano e saía.
Já em casa a vida não era muito fácil, tinha pouco tempo para a família porque mesmo depois do horário de trabalho, ele continuava a perseguir-me até casa. Vivia para o meu trabalho, para a minha carreira como empresário bem-sucedido, e para o dinheiro que ganhava. Sabia tão bem ter um extra na empresa no final do mês, ver que de reunião para reunião os lucros cresciam, a mão de obra a ultrapassar as minhas perspetivas, o mercado internacional a querer comprar o nosso produto mais e mais. Era uma loucura. Trabalhar numa fábrica de têxteis de luxo não era para novatos, era para experientes e bem colocados no mercado. Pelo menos era assim que pensava, o trabalho e o sucesso enchiam-me de adrenalina para querer mais e mais de mim mesmo.
Tempo para os amigos na minha vida também não havia espaço, por vezes lá reservava uns minutinhos para beber uma cerveja com o meu colega de secção após o horário laboral, mas era muito raro isso acontecer, o meu egocentrismo e o amor pelo que fazia era enorme.
As viagens eram o melhor de tudo, quando fazia as malas só pensava no tempo ia levar até fechar a próxima venda, sempre com valores altos que faziam com que o meu sorriso rasga-se de orelha a orelha. A minha família ia sempre comigo, gostava que me acompanhassem, sentia-me mais acompanhado e de certa forma, era como presenteá-los com um pedacinho do mundo que eles não conheciam. Era a maneira que encontrava para compensá-los das minhas ausências. Não é que fosse ter muito tempo para conhecer o lugar onde nos instalaríamos ou acompanhá-los, a desculpa era sempre a mesma, trabalho e mais trabalho.
Sinceramente, julgava até que não se importassem com a minha ausência, via-os sempre felizes. A minha mulher era a mais insistente, mas quando via que os seus luxos dependiam dos meus negócios mudavam de ideias. Amava-a, a ela e aos miúdos.
Eu sei o que estão a pensar neste momento, mas que podia eu fazer mais? Tinha de trabalhar para os ver felizes! Os miúdos adoravam ter sempre novos brinquedos, a minha mulher adorava ir às compras, viajar era o que mais adoravam, nunca julguei que fosse insuficiente, alguém tinha de trabalhar para manter a família.
Cláudia Lopes